O art. 82-A da lei 11.101/05 vedou a extensão dos efeitos da falência aos sócios de responsabilidade limitada e introduziu a previsão expressa da desconsideração da personalidade jurídica, definindo, para tanto, os procedimentos e regras a serem seguidas.
O art. 49-A do Código Civil trata da autonomia da pessoa jurídica em relação à pessoa física, ao dispor que não se deve confundir as personalidades, patrimônio, direitos e deveres das pessoas jurídicas e de seus membros.
Todavia, essa autonomia não é absoluta e poderá ser afastada no caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, nos termos do art. 501 do CC.
A desconsideração da personalidade jurídica também foi disposta no Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 282, ampliando, contudo, o rol de aplicação do incidente, em especial em face da disposição do §5º.
Já no Código de Processo Civil, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi incluído em seus arts. 133 a 137, tornando obrigatório incidente prévio, para os casos de pretensão de atingimento de bens de terceiros estranhos à relação processual originária, atendendo, assim, o corolário do princípio do devido processo legal, ressalvada a dispensa prevista no § 2º, do art. 134 do CPC.
A doutrina divide a desconsideração da personalidade jurídica em Teoria Maior, formulada com base no exposto pelo art. 50 do CC, que defende que o pedido do incidente deve ser fundamentado na existência e na comprovação de abuso de personalidade jurídica, e a Teoria Menor, baseada no disposto no §5º, do art. 28 do CDC, em que, para a autorização da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, basta apenas demonstrar o inadimplemento das obrigações pela sociedade.
Na seara trabalhista, a reforma trabalhista trazida pela lei 13.467/17 trouxe disposição expressa acerca da desconsideração da personalidade jurídica, ao incluir na CLT o art. 855-A, limitando-se, porém, à regulação do seu aspecto procedimental, não tendo sido adotada, de forma expressa, nem a teoria maior, nem a teoria menor. Porém, verifica-se uma prevalência do uso, por analogia, da desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 28 do CDC, de forma que o inadimplemento ou execução frustrada em face da empresa executada já seria pressuposto para a execução do crédito em face dos sócios da empresa. Na prática, observa-se uma flexibilidade excessiva do uso do instituto (JUSTINO, 2022), possibilitando atos de penhora e constrição de bens dos sócios em execuções de credores específicos em detrimento de outros que também tiveram seus créditos inadimplidos, com prejuízo à igualdade entre os credores da sociedade falida.
Vale o registro de que a instrução Normativa 41/18 do TST cuidou especificamente do IDPJ em seus art. 13 e 17, ratificando a aplicabilidade do incidente ao processo do trabalho e fixando o marco inicial regulatório para a iniciativa da parte, bem como ressaltou que a iniciativa de ofício ficará limitada aos casos em que as partes não estiverem representadas por advogado.
Já no direito falimentar, com as inovações trazidas pela lei 14.112/20, verifica-se a adoção da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, merecendo destaque a inclusão do art. 6º-C, que estabelece que é vedada a atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, e as demais hipóteses reguladas pela lei falimentar.
Além disso, o art. 82-A da lei 11.101/05, também introduzido pela lei 14.112/20, vedou a extensão dos efeitos da falência aos sócios de responsabilidade limitada, controladores e administradores, admitindo, contudo, a sua responsabilização pelas dívidas da sociedade empresária falida desde que presentes os requisitos do art. 50 do CC e observando-se as regras processuais do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previstas nos arts. 133 e seguintes do CPC, não aplicada a suspensão de que trata o §3º do art. 134.3
Dessa forma, através da lei 14.112/20, o legislador admite e regulamenta expressamente a desconsideração da personalidade jurídica na falência, e reforça que a extensão dos efeitos da falência aos sócios não poderá ser aplicada no campo da responsabilidade limitada.
Acerca da inovação legislativa, assevera Marcelo Sacramone que “o instituto da desconsideração não possuía previsão na Lei Falimentar até a alteração legislativa, o que motivava uma parte substancial da doutrina a entender que sua aplicação seria impossível. Para essa corrente, a LREF possui sistemas próprios de responsabilização de seus sócios, como os arts. 81 e 82, cuja disciplina é incompatível com a desconsideração. Foi justamente esse posicionamento doutrinário que motivou a inserção do art. 82-A, que vedou a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores da sociedade falida. O art. 82-A foi inserido na lei 11.101/05 para se tentar impedir a aplicação da extensão de falência ou de seus efeitos aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida.” (SACRAMONE, 2021, pág. 717/718)
Outra peculiaridade digna de nota é que, embora as decisões proferidas no âmbito trabalhista tradicionalmente admitam a competência da Justiça do Trabalho para reconhecer a desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida para atingir, nas execuções individuais, o patrimônio dos sócios, com a inovação trazida pelo parágrafo único do art. 82-A da LRF, revela-se a formação de um novo posicionamento na jurisprudência fundamentado no referido dispositivo. Observa-se que, após a introdução do art. 82-A, foram proferidas decisões no sentido de que, estando em andamento o processo de falência com a existência de créditos trabalhistas a serem satisfeitos, a competência para analisar pedido de desconsideração da personalidade jurídica da massa falida deve ser atribuída ao Juízo Universal, a fim de que eventual patrimônio dos sócios seja rateado entre todos os credores, para que não reste prejudicada a satisfação dos créditos dos demais credores preferenciais que integram o processo de falência.
Nesse sentido, foram os julgados proferidos pelo TRT da 6ª Região nos autos 0000113-85.2020.5.06.04134; TRT da 2ª Região nos autos 1000723-23.2016.5.02.00465 e TRT da 3ª Região no processo 0000142-09.2011.5.03.00026.
No âmbito do STJ, antes das alterações da lei 14.112/20, era pacífico o entendimento de que, se ainda não tivesse ocorrido a desconsideração da personalidade jurídica perante o juízo falimentar, não configuraria conflito de competência a constrição de bens dos sócios da empresa falida pela Justiça Trabalhista.
Todavia, em razão da introdução do art. 82-A, ressalta-se que a Ministra Maria Isabel Gallotti, em decisão monocrática proferida no AgInt nos EDcl no CC 190233/SP, publicada em 8/9/22, reconheceu a incompetência do Juízo Trabalhista e declarou a competência exclusiva do Juízo Falimentar para processar e julgar pedido de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, obstando os atos de constrição em face dos sócios da empresa falida na Justiça do Trabalho, ressalvando expressamente as hipóteses em que a decretação da falência se deu em momento anterior à alteração da lei 11.101/05 pela lei 14.112/20.
Lado outro, salienta-se também a existência de decisão monocrática no STJ em sentido contrário, proferida pelo Ministro Felipe Salomão no bojo do CC 181.552/MG, julgado em 1/2/22, que entendeu que a alteração do art. 82-A não implicou a competência exclusiva do Juízo Universal para promover a desconsideração da personalidade jurídica.
O entendimento da exclusividade da competência do juízo falimentar também já foi adotado na justiça comum, em decisão recente proferida em processo em que a massa falida figura como devedora, conforme julgado proferido no Agravo de Instrumento 2241949-20.2022.8.26.0000, pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo7.
Na doutrina, Daniel Carnio Costa e Alexandre Nasser de Melo, ao comentarem o citado art. 82-A, consignam que “não parece mais crível admitir a aplicação da ‘teoria menor da desconsideração’, tampouco o entendimento de que o deferimento do pedido de Recuperação Judicial ou a decretação da Falência sejam suficientes para que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica seja deferido, o que era feito com base no art. 28, §5º, do Código de Defesa do Consumidor. (…) a expectativa é que também os Tribunais do Trabalho passem a respeitar os comandos legais introduzidos pela lei 14.112/20, e que vedam a desconsideração da personalidade jurídica por mero inadimplemento das obrigações pelo falido ou pela Recuperanda, e passem a exigir, em respeito ao princípio da autonomia patrimonial, a comprovação de abuso de direito, desvio de finalidade, violação à lei ou mesmo confusão patrimonial. Após o devido processo legal, caso ocorra o deferimento, pela Justiça do Trabalho, da desconsideração da personalidade jurídica de empresa falida, os valores eventualmente levantados com o patrimônio dos sócios deverão necessariamente ser remetidos ao Juízo Falimentar, para que ocorra o rateio proporcional entre todos os credores trabalhistas.”(COSTA, 2022, pág. 326)
Por todo exposto, é possível concluir que o art. 82-A na lei 11.101/05 trouxe grande avanço em favor do princípio da separação patrimonial entre a sociedade e o sócio de responsabilidade limitada, a sociedade e os seus administradores e entre sociedades do mesmo grupo, ao vedar a extensão da falência a estes, além de prever expressamente a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida nos autos falimentares, e os requisitos para sua aplicação.
No que se refere à competência para a desconsideração da personalidade jurídica em face da sociedade falida, para atingir nas execuções individuais o patrimônio dos sócios, ainda será necessário aguardar como a jurisprudência irá se firmar após as alterações na lei falimentar pela lei 14.112/20, porém, já é possível concluir que o modelo tradicionalmente adotado pela Justiça Trabalhista que admite a desconsideração nos processos em que a massa falida figura como parte de forma mais flexível, por aplicação do art. 28 do CDC (teoria menor), ao passo que na falência tornou-se expressa a necessidade de observância ao art. 50 do CC (teoria maior), já não vem sendo amplamente aceito, uma vez que permite que alguns credores recebam seus créditos antes de outros igualmente afetados pela inadimplência, e por eventuais atos fraudulentos de sócios e terceiros, com ofensa ao “Par Condicio Creditorum”, que norteia o processo falimentar.
1 Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Medida Provisória nº 881, de 2019)
2 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
(…)
§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
3 “Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. (Incluído pela lei 14.112, de 2020) (Vigência)
Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). (Incluído pela lei 14.112, de 2020) (Vigência)”
4 AGRAVO DE PETIÇÃO INTERPOSTO PELO EXEQUENTE. DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO. MASSA FALIDA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DIRECIONAMENTO DOS ATOS EXECUTÓRIOS CONTRA OS SÓCIOS DA SOCIEDADE FALIDA. LEI 14.112/20. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Os arts. 855-A da CLT e 28, § 5º, do CDC c/c art. 50 do CC, subsidiariamente aplicáveis ao processo trabalhista por força dos artigos 8º e 769 da CLT, não excepcionam o fenômeno da desconsideração da personalidade jurídica em relação a qualquer tipo de sociedade. No entanto, nos termos do parágrafo único do art. 82-A, da Lei nº 11.101/05, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar. Ainda, conforme art. 5º, da Lei nº 14.112/20, esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes. Por essa razão, esta justiça especializada não possui competência para apreciar o pleito de desconsideração da personalidade jurídica e direcionamento da execução em face dos sócios da sociedade falida. Agravo a que se nega provimento. (TRT 6ª R.; AP 0000113-85.2020.5.06.0413; Primeira Turma; Rel. Des. Sergio Torres Teixeira; DOEPE 21/10/2021; Pág. 227).
5 EMPRESA COM A FALÊNCIA DECRETADA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO EM FACE DOS SÓCIOS. Enquanto estiver em curso a falência, o Juízo trabalhista nem sequer pode decidir a questão sobre a desconsideração da pessoa jurídica de forma incidente, sob pena de usurpação da competência exclusiva do Juízo Falimentar, conforme expressamente dispõe o parágrafo único do art. 82-A da Lei 11.101/2005, incluído pela Lei 14.112/2020. (TRT da 2ª Região, 17ª Turma, Processo: 1000723-23.2016.5.02.0046, Relator(a): MARIA DE LOURDES ANTONIO, Data: 05-08-2021)
6 AGRAVO DE PETIÇÃO – DECRETAÇÃO DE FALÊNCIA – GRUPO ECONÔMICO – COMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL. Decretada a falência das empresas executadas, o requerimento de inclusão de empresa componente do grupo econômico no polo passivo da ação deverá ser apreciado por aquele juízo específico, em atenção ao que dispõem os arts. 6º e 82-A, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005. (TRT da 3.ª Região; PJe: 0000142-09.2011.5.03.0002 (AP); Disponibilização: 25/08/2022; Órgão Julgador: Quinta Turma; Relator(a)/Redator(a): Convocado Delane Marcolino Ferreira)
7 ARRESTO – Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica – Convolação da recuperação judicial da devedora em falência anterior à instauração do incidente – Necessidade de habilitação do crédito perante o Juízo Universal da Falência – Incompetência do juízo “a quo” para a solução do incidente – Exegese do disposto na Lei 11.101/2005 (art. 82, e art. 82-A e seu parágrafo único, incluídos pela Lei nº 14.112, de 14.12.2020) – Recurso não provido (TJSP; Agravo de Instrumento 2241949-20.2022.8.26.0000; Relator (a): Maia da Rocha; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 13ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/04/2023; Data de Registro: 04/04/2023)
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial: Direito de Empresa, 24ª ed. Revista dos Tribunais, 2021, pág. 61.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. Editora Método. 10ª ed. São Paulo, 2020, pág.162.
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor – À luz da jurisprudência do STJ. Editora Juspodivm. 10ª ed. Salvador, 2015, pág. 276.
SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência.Saraiva Educação. 2ª ed. São Paulo, 2021, pág. 717, 718.
COSTA, Daniel Carnio. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Daniel Carnio Costa, Alexandre Nasser de Melo. 3ª ed. rev. atual. Curitiba: Juruá, 2022, pág. 326.
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência: lei 11.101/05: Comentada artigo por artigo. Manoel Justino Bezerra Filho, Adriano Ribeiro Lyra Bezerra, Eronides A. Rodrigues dos Santos. 16ª ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.
Fonte: Migalhas