Na Mídia

Publicações

Os mecanismos de incentivo ao financiamento às empresas em recuperação judicial

O instituto da Recuperação Judicial objetiva viabilizar a superação da crise econômico-financeira da empresa, para manutenção de sua fonte produtora, dos empregos dos trabalhadores e dos interesses dos credores, preservando, assim, a função social da empresa.

Entretanto, embora o legislador tenha vislumbrado um procedimento com ferramentas judiciais para viabilizar um processo de reestruturação célere e sem entraves jurídicos, o instituto da Recuperação Judicial sempre enfrentou barreiras comerciais, que atingem diretamente o fluxo de caixa e a capacidade de faturamento das empresas que obtém a benesse do deferimento do processamento da Recuperação Judicial, principalmente quanto às instituições financeiras, que limitam as linhas de crédito tão logo a devedora distribui o pedido de Recuperação Judicial.

Como bem pontua BEZERRA FILHO (2022, p. 341), é unânime o entendimento de que não existe Recuperação Judicial possível, sem o chamado “dinheiro novo”. Isso porque qualquer empresa em atividade normal necessita de crédito para implementar seus projetos, o que faz normalmente valendo-se de seus contatos no campo financeiro, assumindo empréstimos em bancos e colhendo dinheiro de investidores em geral. Ocorre que, no momento em que mais necessita de aportes financeiros, os financiadores acabam se retraindo, criando dificuldades intransponíveis para o fornecimento de crédito à empresa em Recuperação Judicial.

Como solução aos entraves financeiros inerentes à condição de Recuperanda, foi implementada pela lei 14.112/20 na reforma da lei 11.101/05, o “Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial”, com a possibilidade de financiamento mediante oneração ou alienação fiduciária de bens e direitos, regulada pelos arts. 69-A e seguintes da lei 11.101/05.

Trata-se de modalidade de financiamento inspirada no Chapter 11 do Bankruptcy Code1, do direito norte americano, conhecido como DIP financing, abreviação de debtor in possession que, a grosso modo, quer dizer devedor na posse.

As alterações implementadas pela lei 14.112/20 apresentam ferramentas que buscam estimular o financiamento do devedor em Recuperação Judicial e estabelecer uma verdadeira prioridade para o credor do financiamento DIP, mitigando o risco de novos investidores e encorajando-os a aportar capital em empresas com dificuldades financeiras.

Os arts. 69-A e 69-F2 inauguram as modalidades de oneração de ativos e constituição de alienação fiduciária como garantias que podem ser instituídas em contratos de financiamento. Tais dispositivos permitem que, através de autorização judicial, sejam onerados ou cedidos fiduciariamente bens ou direitos do ativo não circulante do próprio devedor em recuperação judicial.

A esse respeito, é relevante a ponderação de Marcelo Barbosa Sacramone (2021, p. 373-374);

A autorização judicial somente será necessária para a obtenção de financiamento às atividades e às despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos, com a oneração ou alienação fiduciária de bens e direitos, se os credores, pela Assembleia Geral ou pelos modos alternativos de deliberação, não tenham aprovado o plano de recuperação judicial com a previsão do referido meio de soerguimento. Para a autorização judicial, após a oitiva do Comitê de Credores, caso existente, ou do administrador judicial, deverá ser reconhecida a evidente utilidade para a reestruturação empresarial. Não apenas deverá ser aferida a importância do financiamento da manutenção da atividade produtiva, como deverá ser apreciado se a garantia concedida ou a oneração do bem em garantia são imprescindíveis e razoáveis ao financiamento pretendido, bem como se não promovem a expropriação dos bens do devedor em detrimento dos demais credores.

Portanto, a autorização judicial não deverá ser concedida sem que haja a verificação da pertinência do financiamento, compreendida pela imprescindibilidade e razoabilidade dos recursos pretendidos. Cabe destacar que o devedor tem o ônus de demonstrar que o ato é útil à recuperação e que há maior probabilidade de os credores serem beneficiados do que prejudicados.

Indo adiante, verifica-se que os arts. 69-B e 69-D3 conferem ao financiador um certo grau de segurança jurídica, haja vista que o primeiro impõe limitação à eventual decisão proferida em grau de recurso, assegurando ao financiador a manutenção da garantia relativa aos valores efetivamente entregues ao devedor.

Na mesma linha, o art. 69-D disciplina os efeitos de convolação da recuperação judicial em falência para o contrato de financiamento, que será automaticamente rescindido, com a manutenção das garantias e preferências instituídas no limite dos valores efetivamente entregues ao devedor, antes da data da sentença de quebra.

Tais previsões por certo concedem maior segurança jurídica à operação de financiamento DIP, considerando que a reforma, em grau de recurso, da decisão que autoriza a contratação do financiamento, não poderá alterar sua natureza extraconcursal, tampouco anular as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé.

É de se notar, portanto, que a inovação legislativa vai além da definição dos requisitos da operação de crédito a empresas em recuperação judicial, estendendo-se aos efeitos das garantias da operação financeira de alto risco nesse contexto.

Impende ressaltar, ainda, que de acordo com o caput do art. 69-C4, o magistrado poderá autorizar a constituição de garantia subordinada sobre um ou mais ativos do devedor em favor do financiador de devedor em Recuperação Judicial, dispensando a anuência do detentor da garantia original, ou seja, o compartilhamento das garantias pelos atuais credores.

Revela-se de grande importância tal medida, ao passo que, via de regra, o devedor que se vale do instituto da Recuperação Judicial já não tem mais bens livres para oferecer em garantia aos novos financiadores. No entanto, apesar de trazer certa celeridade ao procedimento de contratação de empréstimo e instituição de garantia subordinada, com a dispensa de notificação e concordância do credor originalmente garantido, existem limitações que merecem destaque.

O §1º do art. 69-C impõe uma limitação à constituição da garantia subordinada, prevendo que tal garantia ficará limitada ao eventual excesso resultante da alienação do ativo, de modo a proteger os direitos do credor da garantia constituída em primazia. No entanto, usualmente, o que se verifica é que as garantias instituídas nos contratos são inferiores ao valor global do instrumento garantido.

Relevante, ainda, o §2º do art. 69-C que traz consigo uma dificuldade prática ao excluir a hipótese de garantia subordinada a qualquer modalidade de alienação fiduciária, cessa~o fiduciária ou sobre qualquer valor excedente da garantia. Como se denota do dia a dia, hoje as únicas garantias aceitas pelos financiadores são as de natureza fiduciária, alienação ou cessão. Vedada a garantia subordinada para esses casos fiduciários, provavelmente ficará sem qualquer utilidade prática (BEZERRA, 2022, p. 251).

Outro aspecto que merece destaque é a inclusão que permite ampliar o rol de agentes financiadores, dada a escassez de agentes que concedem esse tipo de financiamento devido ao risco inerente. Nesse sentido, os arts. 69-E e 69-F5 autorizam que o financiamento do devedor seja realizado por qualquer pessoa, inclusive credores, sujeitos ou não à Recuperação Judicial, familiares, sócios e integrantes do grupo do devedor, sendo permitido, ainda, que qualquer pessoa ou entidade garanta o financiamento mediante a oneração ou a alienação fiduciária de bens e direitos, inclusive o próprio devedor e os demais integrantes do seu grupo, estejam ou não em recuperação judicial.

Por fim, ainda no intuito de privilegiar o instituto importado do direito estadunidense, o financiamento DIP teve a sua extraconcursalidade estabelecida no inciso I-B do art. 846, ficando subordinado, tão somente, aos valores das despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência, previstas no art. 84 inciso I-A, assim como, subordinado aos créditos de natureza estritamente salarial dos últimos 03 (três) meses anteriores à decretação da falência.

Prestes a completar dois anos desde que foi sancionada, a lei 14.112/20 inseriu significativas alterações à lei 11.101/05, mas não se pode olvidar que o mercado de financiamento para empresas em Recuperação Judicial ainda está se estruturando no Brasil, com taxas elevadas e poucos financiadores interessados.

Destarte, em que pese as alterações legislativas no intuito de fomentar o financiamento das empresas em recuperação, as Recuperandas permanecem se reinventando a fim de buscarem o soerguimento financeiro para viabilizar a manutenção de suas atividades e o pagamento de seus credores, já que o acesso a crédito continua restrito em razão da própria Recuperação Judicial.


https://www.law.cornell.edu/uscode/text/11/chapter-11

2 Art. 69-A. Durante a recuperação judicial, nos termos dos arts. 66 e 67 desta lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos.

Art. 69-F. Qualquer pessoa ou entidade pode garantir o financiamento de que trata esta Seção mediante a oneração ou a alienação fiduciária de bens e direitos, inclusive o próprio devedor e os demais integrantes do seu grupo, estejam ou não em recuperação judicial.

3 Art. 69-B. A modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado.

Art. 69-D. Caso a recuperação judicial seja convolada em falência antes da liberação integral dos valores de que trata esta Seção, o contrato de financiamento será considerado automaticamente rescindido.

4 Art. 69-C. O juiz poderá autorizar a constituição de garantia subordinada sobre um ou mais ativos do devedor em favor do financiador de devedor em recuperação judicial, dispensando a anuência do detentor da garantia original.

§ 1º A garantia subordinada, em qualquer hipótese, ficará limitada ao eventual excesso resultante da alienação do ativo objeto da garantia original.

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica a qualquer modalidade de alienação fiduciária ou de cessa~o fiduciária.

5 Art. 69-E. O financiamento de que trata esta Seção poderá ser realizado por qualquer pessoa, inclusive credores, sujeitos ou não à recuperação judicial, familiares, sócios e integrantes do grupo do devedor.

Art. 69-F. Qualquer pessoa ou entidade pode garantir o financiamento de que trata esta Seção mediante a oneração ou a alienação fiduciária de bens e direitos, inclusive o próprio devedor e os demais integrantes do seu grupo, estejam ou não em recuperação judicial.

6 Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, aqueles relativos:

I-A – às quantias referidas nos arts. 150 e 151 desta lei;

I-B – ao valor efetivamente entregue ao devedor em recuperação judicial pelo financiador, em conformidade com o disposto na Seção IV-A do Capítulo III desta lei;

Fonte: Migalhas

Gostou? Compartilhe essa publicação.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Email
Telegram
WhatsApp