O número de empresas brasileiras que pediram recuperação judicial disparou em 2023, na comparação com o ano passado. Em 2022, 275 companhias entraram com o requerimento na Justiça nos quatro primeiros meses. Já neste ano, foram 382 no mesmo período, alta de 39%, segundo dados da Serasa Experian.
Entre as empresas que recorreram a este instrumento jurídico neste ano para ganhar fôlego financeiro estão gigantes como Americanas, Oi, Light e Grupo Petrópolis – controlador das marcas de cerveja Itaipava e Petra. Quando o processo é aceito pela Justiça, elas conseguem um prazo de dois anos para pagar as dívidas antigas com os credores.
“No fim de um ano da recuperação judicial, a empresa tem que pagar 40% do valor da dívida e no fim do segundo ano, os outros 60%. Mas muitas vezes, este processo também é uma oportunidade da companhia dar uma negociada com os fornecedores, com os credores. A recuperação judicial não é uma falência. É uma negociação, mas ajuizada”, explica Roberto Kanter, economista e professor de MBAs da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Mas o número de pedidos de falência de empresas também subiu neste ano no Brasil. Passou de 258, no primeiro quadrimestre de 2022, para 346 no mesmo período de 2023, um aumento de 34%.
Entre estas companhias está a Marisa, gigante do setor de moda e vestuário. Dois fornecedores entraram com pedidos de falência da empresa no Tribunal de Justiça de São Paulo, cobrando um valor de R$ 709 mil. A empresa alega que conseguiu negociar com a maioria dos credores e que já liquidou quase 90% da dívida total. E que este valor que as empresas cobram nos pedidos de falência é insignificante, perto do montante que já foi negociado.
“Diferentemente dos casos de recuperação judicial, você conta nos dedos as situações em que as próprias empresas pediram falência. Geralmente quem pede é o credor. É igual alguém protestar um cheque seu, uma duplicata sua. A pessoa quer cobrar”, afirma Kanter.
E quando as empresas conseguem ter o pedido de recuperação judicial aceito, elas ficam livres do processo de falência, pelo menos durante dois anos. “Com a recuperação judicial, não há falência. Você não pode pedir falência de uma empresa nesta situação. A Justiça inibe isso. A companhia ganha um ano e depois mais um para poder pagar as dívidas”, diferencia.
Crise no varejo
No dia 1º de janeiro deste ano, Sergio Rial assumiu o cargo de CEO da Americanas. Em dez dias, ele anunciou a descoberta de um rombo contábil de R$ 20 bilhões na empresa. Basicamente, valores que deveriam ser listados pela varejista como dívidas bancárias eram descritos como dívidas com fornecedores – que não têm juros. Ao longo dos anos, esta situação provocou o rombo bilionário. Rial deixou o cargo e dias depois, a empresa anunciou que a dívida passava de R$ 40 bilhões.
O setor, que já enfrentava um momento difícil por causa do endividamento das famílias durante a pandemia de Covid-19 e da disparada da taxa de juros (de 2% para 13,75%) para conter a inflação causada pela guerra entre Rússia e Ucrânia, passou a enfrentar também a desconfiança do setor bancário, que dificultou o acesso ao crédito às empresas desse segmento.
“Na prática, isso significou um grande aperto tanto para o orçamento das famílias quanto das empresas. E aí a gente tem um quadro onde as pessoas consomem muito pouco, então os resultados do varejo têm sido muito fracos. O mesmo processo aconteceu do lado das empresas, que também se endividaram muito e agora estão com o caixa muito pressionado por conta do aumento da taxa de juros”, explica o diretor de Economia e Inovação da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Guilherme Mercês.
E este aperto de caixa tem levado o setor do varejo a três situações, segundo o economista. “Primeiro um movimento de fechamento de lojas e o enxugamento de custos para tentar ajustar. Aquelas que não conseguiram este ajuste pediram recuperação judicial e outras nem conseguiram ajustar e nem pedir recuperação judicial e estão, inclusive, com pedidos de falência. Então este é o quadro atual que descreve a situação do varejo”.
E a falta de crédito deixou a situação ainda pior para o setor. Como as varejistas estão gerando pouca receita, os bancos restringiram as linhas de crédito para as companhias do segmento, que costumam usar o dinheiro para o fluxo de caixa.
“Sem dúvida, a crise da Americanas é um fator adicional que obviamente contrai mais o mercado de crédito e dificulta ainda mais tanto o acesso quanto o custo para financiamento, principalmente para capital de giro”, confirma Guilherme Mercês. E como a taxa de juros está alta, os bancos preferem deixar o dinheiro rendendo em títulos de renda fixa do que emprestar para empresas de um setor em crise.
E para piorar ainda mais o cenário para as empresas brasileiras, as companhias chinesas entraram com tudo no mercado de moda, vestuário e varejo. Shein, Shopee e AliExpress pagam menos impostos do que as concorrentes nacionais, como Lojas Renner, Riachuelo e C&A. O Ministério da Fazenda estuda como deixar esta concorrência menos desleal.
O reestruturador de empresas João Pinheiro Nogueira Batista, que assumiu o comando das Lojas Marisa há pouco mais de um mês, disse, em entrevista ao Estadão/Broadcast que a concorrência com as varejistas internacionais, como a Shein, prejudicou a companhia.
“Se economia estivesse melhor e sem esse contrabando todo, talvez eu não tivesse de fechar 90 lojas”, disse Nogueira Batista na ocasião.
Outras empresas brasileiras já admitiram recentemente que estão com problemas financeiros. Uma delas é a Bombril, que produz uma das palhas de aço mais vendidas do país e diversos outros produtos de limpeza. A companhia pegou um empréstimo de R$ 300 milhões para pagar dívidas.
A dona de marcas como Limpol e Mon Bijou deve cerca de R$ 400 milhões e 77% da dívida precisa ser paga em até 12 meses. No entanto, a empresa garantiu que não vai entrar com pedido de recuperação judicial. A Bombril já precisou recorrer a este instrumento jurídico em 2003, quando tentou expandir o portfólio para o setor de cosméticos e a estratégia não deu certo.
Impacto da crise da Americanas para fornecedores e consumidores
Um estudo recente feito pela Kantar, empresa de dados e consultoria, revelou o tamanho do impacto do processo de recuperação judicial das Americanas para fornecedores e consumidores.
Para os fornecedores, a dívida é de R$ 875 milhões para micro, pequenas e médias empresas brasileiras. Caso o pedido de recuperação judicial seja aceito pela Justiça, a Americanas terá dois anos para pagar este valor.
Em relação aos consumidores, cerca de 20 milhões de brasileiros compraram nas Americanas nos últimos 12 meses, segundo a Kantar, reforçando a importância da varejista para eles. O número representa uma alta de 13% em relação ao intervalo anterior.
Segundo a Kantar, a crise da Americanas afeta mais algumas categorias de produtos vendidos pela empresa. Por exemplo, o estudo indica que os impactos da recuperação judicial devem afetar bastante a venda dos itens Higiene e Beleza. Isso porque eles são 41% mais relevantes em valor nas Americanas do que na média de mercado, de acordo com o levantamento.
A varejista também desponta entre os consumidores nas categorias de doces e petiscos, visto que 26% dos brasileiros compram snacks, biscoitos e chocolates em suas lojas físicas ou online. Já na Páscoa, ela representa 11% do volume vendido em chocolates no Brasil.
Como a varejista enfrenta um ano de mais dificuldades, os consumidores devem perceber menos promoções na Americanas, algo que atrai boa parte da clientela.
“A Americanas é muito forte em promoções, ela é muito agressiva. Tem um dado super interessante que é a percepção dos consumidores para com a Americanas em relação a promoção, quanto eles percebem que é promocionado o que eles compram na empresa.
Os consumidores percebem que cerca 20% do que eles compram na Americanas é em promoções. No Brasil, como um todo, esse número vai para 11%. A diferença é muito grande”, explica Rafael Kröger Couto, diretor de Análises Avançadas da Kantar.
Após a crise da Americanas, parte dos clientes passou a comprar chocolates, snacks e outros produtos do tipo em outros lugares, como supermercados e drogarias.
“Importante entender quais outros canais poderiam absorver essa demanda. Por exemplo, para o consumidor de Lojas Americanas, o canal Super de Rede (grandes redes de supermercados) é 15% mais representativo em valor do que para a média do mercado”, completa Couto.
Algumas empresas que entraram com pedido de recuperação judicial em 2023
AMERICANAS
Situação: A Americanas trabalha atualmente para ter seu plano de recuperação judicial aceito. Ela propõe a entrada de capital dos maiores acionistas e deságios de 50% a 80% nas dívidas com os credores que não aderirem à proposta da Americanas. Em janeiro deste ano, o então CEO da companhia, Sergio Rial, anunciou a descoberta de um rombo contábil de R$ 20 bilhões. Ele deixou a empresa, que dias depois revelou que a dívida chegou aos R$ 40 bilhões e entrou na Justiça com uma “medida de tutela de urgência cautelar”.
Dívida: R$ 43 bilhões
LIGHT
Situação: A Light entrou com pedido de recuperação judicial, em maio deste ano, na 3ª Vara Empresarial do Estado do Rio de Janeiro. A companhia de energia alega que fez esforços para equacionar a situação financeira, mas “pouquíssimos credores” aceitaram negociar com a empresa. Ela diz que enfrenta muitos problemas com furto de energia. Segundo a companhia, a energia roubada no Rio de Janeiro corresponde a R$ 2 bilhões por ano e equivale a todo o consumo do Estado do Espírito Santo.
Dívida: R$ 11 bilhões
OI
Situação: Após o fim de um processo de recuperação judicial que durou 6 anos, com dívidas de cerca de R$ 65 bilhões a mais de 55 mil credores, a Oi alegou que cumpriu todas as obrigações e entrou com um novo pedido de RJ em março deste ano à 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, que atendeu à solicitação. A empresa alega que precisava de ações adicionais. O novo pedido de recuperação judicial suspendeu a execução de dívidas da Oi e de suas subsidiárias. A empresa declarou neste novo processo uma dívida de R$ 43,7 bilhões. Ela anunciou que vai vender ativos e captar recursos para pagar o que deve.
Dívida: R$ 43,7 bilhões
GRUPO PETRÓPOLIS
Situação: Outra empresa a entrar com o pedido de recuperação judicial em 2023 foi o Grupo Petrópolis – controlador das marcas de cerveja Itaipava e Petra. O processo foi aceito em abril pela 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro. Com a decisão, estão suspensas todas as ações ou execuções contra a companhia. A empresa alegou enfrentar uma crise de liquidez há um ano e meio, com grande queda no volume de vendas e dificuldade de caixa. Ela tem 24 mil funcionários.
Dívida: R$ 4,2 bilhões
Fonte: O Tempo