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Recuperação judicial e a estratégia do ‘Stalking Horse’: Protegendo interesses e maximizando ativos

A recuperação judicial de empresas é um processo complexo que exige estratégias eficazes para proteger os interesses das partes envolvidas e otimizar a venda de ativos. Nesse contexto, a estratégia do 'Stalking Horse' tem se destacado como uma ferramenta valiosa, embora não prevista na legislação brasileira.

Em processos de recuperação judicial, a estratégia do “Stalking Horse” tem se destacado como uma ferramenta valiosa para acelerar a venda de ativos e proteger os interesses das partes envolvidas. A expressão, importada do direito norte-americano, tem origem na tática utilizada na caça, na qual o caçador se esconde atrás de um cavalo (ou da imagem de um cavalo) para conseguir se aproximar da presa sem espantá-la¹. Apesar de não estar expressamente prevista na legislação brasileira, a lei 14.112/20, ao incluir o inciso V no art. 142 da LRF, que prevê que a alienação de bens se dará por “qualquer outra modalidade,” buscou incorporar novas práticas de avaliação e alienação de ativos na recuperação judicial e na falência.

O “Stalking Horse” é uma delas, cuja abordagem envolve a aceitação de uma oferta inicial por parte de um comprador, que atua como proponente âncora, estabelecendo um preço base para os ativos da empresa em dificuldades financeiras, que deve ser superado por outros licitantes. Ao estabelecer um preço base para os ativos da empresa em recuperação judicial, essa estratégia assegura que os ativos não sejam vendidos a preços substancialmente abaixo do mercado. Isso é de crucial importância, uma vez que os credores buscam recuperar seus investimentos de forma justa e eficaz. A oferta inicial fornece um ponto de partida sólido que protege contra vendas apressadas e injustas, proporcionando um ambiente de negociação mais equitativo.

Destaca-se que a proposta inicial precede a realização de uma “due diligence” a respeito da qualidade do ativo e serve para criar um preço mínimo e vinculante para o ativo. A partir da “due diligence,” o “Stalking Horse” realiza o trabalho de precificação do ativo, estabelece um valor mínimo aceitável ao vendedor e, com isso, fomenta a competição, na medida em que os demais interessados terão um ponto de partida para os seus respectivos trabalhos de precificação do ativo.

A esse respeito, é relevante a ponderação de Marcelo Barbosa Sacramone (2023, p. 194-195):

“Aos interessados garante-se acesso à documentação necessária à realização de due diligence e precificação do ativo, o que mitiga a assimetria informacional que pode prejudicar a avaliação do bem. Após a due diligence, os interessados fazem uma proposta e, dentre os proponentes, o devedor escolhe aquele que atuará como stalking horse. (…) Como mencionado, o Stalking Horse tem acesso prévio à documentação da devedora e ao ativo, o que aumenta a visibilidade quanto aos eventuais riscos atrelados à aquisição e permite uma avaliação mais precisa do bem ofertado. Diante desse acesso, o stalking horse auxiliaria a avaliar os ativos a serem vendidos, o que poderá lhe onerar financeiramente, mas resultará em benefício à recuperanda a qual poderá não contar com referidos valores para realizar a avaliação imprescindível à liquidação do bem. Diante dessa oneração, ser-lhe-ão assegurados determinados privilégios na aquisição do bem, desde que não prejudiquem o procedimento competitivo.”²

O proponente âncora, além do direito à realização de “due diligence,” consegue negociar termos favoráveis em seu contrato de compra, como o direito de igualar (“right to match”) qualquer oferta superior no leilão ou de apresentar oferta superior (“right to top”). Ainda, há a possibilidade de estabelecer a “break-up fee” que é nada mais do que uma multa compensatória a ser paga pelo devedor caso a venda não se concretize. O seu objetivo é compensar o “Stalking Horse” pelo esforço com a avaliação dos ativos e na apresentação da proposta de uma oferta mínima, o que pode servir para despertar o interesse de outros licitantes no bem. O contrato ainda pode prever a possibilidade de reaver as despesas realizadas na negociação do acordo, caso a proposta inicial não seja a vencedora.

A alienação de ativos após a distribuição do pedido de recuperação judicial poderá ocorrer na forma prevista no Plano de Recuperação Judicial aprovado (art. 60 da LRF) ou mediante autorização judicial, na forma prevista no art. 66 da lei 11.101/05. 

A existência de “Stalking Horse” e as condições acordadas entre a Recuperanda e esse potencial adquirente poderão vir detalhadas no plano de recuperação judicial para deliberação dos credores em assembleia geral de credores e do Poder Judiciário. O plano de recuperação judicial deve conter os critérios para a participação de outros interessados na aquisição do ativo, de modo a garantir a devida concorrência. Vale destacar que trata-se de mera expectativa de direito, de modo que, em caso de rejeição do plano de recuperação judicial, o proponente não terá direito a indenização, salvo a presença da “break-up fee.”

Embora o “Stalking Horse” seja uma ferramenta valiosa em processos de recuperação judicial, a presença das cláusulas de “right to top” e “break-up fee” são frequentemente objeto de recurso, como no caso do Grupo Abeoga, em que houve o reconhecimento da validade da cláusula “right to top,” que concede ao stalking horse o direito de cobrir a melhor oferta, caso a sua fosse superada. 

No caso em questão, o Agravante, também interessado na aquisição do ativo, se insurgiu contra a “right to top,” sob o argumento de que a cláusula deveria valer para os demais interessados na aquisição de ativos, sob pena de se caracterizar um tratamento desigual aos participantes da venda judicial. Contudo, o des. Carlos dos Santos Oliveira reconheceu a legalidade da cláusula, que, em suas palavras, “não constitui qualquer ilegalidade ou violação à isonomia, visto que o ‘Stalking Horse’ estava em posição diferenciada por força do seu comprometimento mediante apresentação da primeira proposta firme vinculante de aquisição da UPI, que viabilizou o próprio procedimento de alienação dos referidos ativos, principal meio previsto para o pagamento dos credores e soerguimento das recuperandas.”

Outro case que enfrentou a validade das cláusulas de “right to top” e “break-up fee” foi a recuperação judicial do Grupo Estre4, em que um credor, interessado nos ativos alienados ao “Stalking Horse,” se insurgiu contra a decisão que homologou a alienação, sob a alegação de que houve excessivo favorecimento ao “Stalking Horse”. 

No acórdão que negou provimento ao recurso, o ilmo. des. relator J.B. Franco de Godoi entendeu que a oferta “Stalking Horse” atende ao princípio do soerguimento da recuperanda, obstaculizando a realização de leilão com lances muito baixos. Ainda completou que, pela própria natureza do procedimento, que exige um comprometimento maior do “Primeiro Proponente,” é certo que o processo de escolha do proponente seja criterioso, considerando os interesses da recuperanda, e anteceda o processo competitivo em si, no qual este concorrerá com os demais proponentes, com algumas prerrogativas. 

Para o desembargador, ainda que se possa considerar o valor da “break-up fee” um pouco acima dos padrões ordinários (6,5% do valor do lance), a fixação da verba neste patamar não constitui, per se, ilegalidade, sendo, portanto, prerrogativa exclusiva da Assembleia Geral de Credores sua fixação no patamar apropriado ao fim que se destina.

Conforme demonstrado, o “Stalking Horse” atua como um âncora, estabelecendo um preço mínimo para os ativos da empresa, o que impede vendas a preços injustamente baixos, assegurando a recuperação equitativa dos credores.

Além disso, essa estratégia incentiva a concorrência e a transparência por meio da “due diligence”, onde o “Stalking Horse” avalia os ativos e estabelece um valor mínimo aceitável, o que beneficia a recuperanda ao proporcionar uma avaliação precisa e a mitigação de riscos potenciais. O direito de igualar ofertas superiores e a possibilidade de “break-up fee” representam incentivos que compensam o esforço do “Stalking Horse” na avaliação e na apresentação da proposta inicial. Essas cláusulas se mostram fundamentais para garantir que as negociações sejam conduzidas de maneira justa e eficaz, preservando os interesses de todas as partes envolvidas.

Destarte, na esteira dos desafios enfrentados em processos de recuperação judicial, o “Stalking Horse” emerge como uma estratégia crucial que protege os interesses das partes envolvidas, ao mesmo tempo em que impulsiona a venda de ativos e preserva a justiça nas negociações. Embora não esteja explicitamente delineada na legislação brasileira, sua adoção é respaldada pela lei 14.112/20, que busca modernizar as práticas de avaliação e alienação de ativos durante a recuperação judicial. 


1 GARCIA,Rodrigo Saraiva Porto – Novas tendências para a venda de ativos na recuperação judicial: avanço ou retrocesso do novo regime de impugnações? – Revista Semestral de Direito Empresarial – Rio de Janeiro -v. 27, n. 2, p. 130 – jul./dez. 2020

2 Sacramone, Marcelo B. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. Disponível em: Minha Biblioteca, (4th edição). Editora Saraiva, 2023.

3 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, AI n° 0005568-65.2018.8.19.0000, Carlos Santos de Oliveira, 22ª Câmara Cível, 22 maio 2018

4 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – AI: 22304723420218260000 SP 2230472-34.2021.8.26.0000, Relator: J. B. Franco de Godoi, Data de Julgamento: 30/03/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 30/03/2022

Fonte: Migalhas

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